Ainda
atônito com o que ouviu após ter estado em puro êxtase, João de
Castro voltou à sua cama. Deitou-se. Porém, não acreditava que na
noite que seria a mais feliz da sua vida estava a sentir um vazio
dentro do peito, como se nada mais de pior pudesse acontecer e o
mundo inteiro estivesse paralisado. Cobriu-se com o lençol e ficou a
olhar para o canto do teto. Apenas alguns segundos depois as lágrimas
começaram a escorrer do seu rosto. Controlou-se o que pode para que
Luis não percebesse, mas este já dormia e nada escutou.
No
outro dia não voltaram ao assunto. Na realidade, nem conversaram e
foram embora do sítio sem trocar uma palavra. Claro que os pais de
Luis perceberam que algo estava estranho, mas, obviamente, resolveram
não mexer no assunto.
A
semana passou e Luis estava pronto para viajar. Seus vizinhos
organizaram uma despedida na casa de um deles, mas João não
apareceu. Clara não vira João desde a semana anterior e não
conteve-se:
-
Luis, o João não vem?
-
Não sei. Parece que não.
-
Aconteceu alguma coisa entre vocês?
-
Ah Clara, não enche que eu to aqui pra me divertir.
No
outro dia Luis foi embora e Clara foi procurar João. Os homens, com
raras exceções, são mesmo estúpidos! Todos os amigos em comum de
João e Luis não perceberam a ausência dele na festa, como também
não perceberam o seu silêncio e o seu isolamento durante os últimos
dias. Clara Assunção não precisou que ninguém dissesse nada e já
sabia que entre os dois havia algum problema.
Quando
chegou a casa de João recebeu da mãe do menino a notícia de que
este estava a dormir desde a tarde anterior e achava melhor que Clara
o procurasse no outro dia na escola. A menina aceitou contrariada a
justificativa da mãe de João e esperou o dia seguinte. No entanto,
João não foi à escola na segunda e nem na terça-feira. As sete da
manhã de quarta, Clara ficou na porta da casa de João e viu quando
este saiu normalmente com o uniforme e o material.
-
Vais matar aula hoje de novo, João?
-
Clara, você não devia...
-
Me diz pra onde tu estás indo que eu vou junto.
-
Ao Horto.
-
Então vamos.
No
caminho para o Horto Florestal João não disse nada. Claro que Clara
Assunção tentou puxar assunto de diversas maneiras, mas ele
limitava-se aos monossílabos sim e não. Caminharam bastante ao
redor do lago, entraram por trilhas e quando pararam para descansar
um pouco ela foi direto ao assunto.
-
Sei que tu não estás bem e tenho a certeza de que algo aconteceu
entre ti e o Luis. Seja o que for, saiba que eu to aqui pra te
ajudar, João. Sei o quanto é difícil guardar algo que está nos
fazendo mal, mas também sei que ao falar é como se uma tonelada
fosse tirada...
João
de Castro desabou. Chorava copiosamente, como a criança no colo da
mãe a pedir o leite ou querendo dormir. Chorava tanto que já
soluçava e mal conseguia respirar. Clara pegou no seus cabelos e com
a outra mão pressionou o peito do amigo com movimentos circulares.
Aos poucos João acalmou-se e Clara aproximou o seu rosto ao dele.
Com pena do amigo deixou que seus lábios tocassem nos dele. Como
João não reagiu, Clara passou a beijá-lo como desejara há muito.
O
Horto Florestal encheu-se de vida. O céu abriu de repente e os
pássaros começaram a cantar. Era a primavera que chegava no exato
instante em que Clara Assunção e João de Castro beijavam-se pela
primeira vez. Foi a primeira de um namoro que durou dois meses. João
sentia-se bem ao lado dela. Era querido e amparado e Clara admirava a
calma e o respeito que ele lhe oferecia. Em dois meses não teve
nenhuma tentativa de avançar nas carícias e o fazia apenas quando
ela o conduzia.
Tinham
um relacionamento perfeito, pois ambos se faziam bem e nutriam
respeito mútuo, nunca imaginado por nenhum dos dois numa relação
com Luis Guimarães. Já diziam as gerações passadas: "por
fora bela viola, por dentro pão bolorento". De fato, João se
sentia bem ao lado de Clara, mas após dois meses percebera que o que
nutria por ela não era paixão e desejo. Talvez um amor verdadeiro,
mas destes que não são mais do que um amor de amigo e não de
casal. Toda vez que Clara o beijava sentia um certo incômodo, como
se não precisasse disso para continuar ao lado dela. Por duas vezes
tentou terminar a relação para não iludi-la, mas não conseguia
magoá-la desse jeito.
Uma
noite, das muitas agitadas que teve enquanto dormia, sonhou que Luis
e Clara discutiam, mas ele, João, via tudo de longe e não conseguia
entender o que falavam. Via passar pela mão de ambos um porta
retrato e a discussão acabou quando Luis arremessou-o ao chão. De
repente os dois já não estavam mais lá e ele chegou perto do porta
retrato. Ao pegá-lo do chão viu sua foto vestindo uma batina.
Acordou
assustado, mas em seguida sentiu a paz e a tranquilidade que buscara
desde a noite com Luis. Queria sentir aquilo sempre e, na manhã
seguinte, anunciou a sua mãe: iria para um seminário.
É
claro que não estamos aqui para estudar ou decifrar os sonhos de
João de Castro. Mesmo porque o autor não se sente preparado para
isso e sabe ter gente no mundo da psicologia muito mais capaz de
tentar fazê-lo. O fato é que João se apegou a um sonho para fazer
o que muitos de nós fazemos em situações emocionalmente difíceis:
fugimos. Inventamos uma desculpa qualquer ou nos apegamos a pequenas
coisas que nos permitam fazer o que nos parece ser a maneira mais
simples de resolver tudo. E, é claro, a fuga nem sempre é física
como a de João. Pode vir em diversas formas. Há mulheres que após
perderem um filho prematuramente engravidam rapidamente para não
ter de enfrentar a dor da perda. Existem pessoas que terminam um
relacionamento por não quererem enfrentar os medos e a sua própria
insegurança. Há aqueles que para não ter de enfrentar a rejeição
preferem fugir do encontro que os levaria a conhecer o seu verdadeiro
pai.
A
fuga, muito provavelmente, é instintiva e não racional. Por isso
mesmo, é muitas das vezes usada por nós, seres humanos. Mas,
desejos e sentimentos não se apagam com o tempo. Não se vão com o
sopro do vento ou a força da tempestade. Podem ficar escondidos , às
vezes por um breve momento, as vezes por um longo tempo, mas eles
voltam. E uma hora precisam ser enfrentados para serem resolvidos e
para que possamos seguir em frente.